domingo, 1 de dezembro de 2013

POEMA

Apetece-me escrever um poema. 


Um poema fechado dentro de si
para ser compreendido
 apenas
pelos passarinhos que chilreiam lá fora
sobre as três árvores
da minha única paisagem;
para ser sentido
na canção da seiva
circulante no verde das ervas
do caminho áspero da encosta;
e pelo brilho do sol
e pelo carácter integro dos homens. 


Um poema que não sejam letras
mas sangue vivo
em artérias pulsáteis dum universo matemático
e sejam astros cintilantes
para calmas noites
de Invernos chuvosos e frios
e seja lume para acolher as gazelas
que pastam inseguras
nos campos acolhedores da imensa vida;
amizade para corações odientos;
motor impelindo o impossível
para a realidade das horas;
cântico harmonioso para formosura dos homens. 


Um poema
- (ah! quem comparou a África
a uma interrogação cujo ponto é Madagáscar?) 


Um poema solução
resolvendo a curva interrogativa da imagem
em linha recta de afirmação;
a beleza das florestas virgens
e a precisão da engrenagem da existência;


o som fantástico do trovejar sobre pedras;
os cataclismos fluviais
pendentes sobre as frágeis canoas do rio Zaire;
a obnubilação ansiosa das almas da penumbra
o claro arrebol no olhos dos homens. 


Um poema traçado sobre aço
escrito com as flores da terra
e com os braços erguidos da podridão;
esculpido no amor
que exala a esperança daquele meu amigo
a esta hora com a tanga ensopada
no suor do seu dorso;
com as canções adocicadas dum quissange ao luar;
das gargalhadas infantis para a minha amada;
do calor simpático
do corpo sangrento dos homens


Um poema fechado
– longo e imperceptível –
em que amor e ódio entrelaçados
sejam a síntese da discordância
para ser cantado em todas as línguas
guiado pelo som da marimba e do piano;
ritmo de batuque enxertado sobre as valsas
da outra mocidade;
harmonia de xinguilamentos
sobre o bárbaro matraquear das máquinas de escrever;
grito aflitivo no vácuo
debatendo-se para encontrar a vibração da matéria
e a aspiração dos homens. 


Mas não escreverei o poema. 


Em que subterrâneos circularia
o ar irrespirável da violência?
Nas cavernas dos teus pulmões
ò caften das vielas sórdidas
do conformismo?
Ou na avidez dos quilométricos intestinos
dos chacais?
Ou nas cavidades prostituídas do coração
infame do esclavagismo?
Ou nas goelas
da desonestidade inconsciente? 


Não escreverei o poema. 


Escreverei cartas à minha amada
preencherei os espaços claros dos impressos
com letra impecável
e nos intervalos
cantarei canções afro-brasileiras.
Sonharei.
Sonharei com os olhos do amor
encarnados nas tuas maravilhosas mãos
de suavidade e ternura.
Sonharei com aqueles dias de que falavas
quando te referias à primavera;
sonharei contigo
e com o prazer de beber gotas de orvalho
na relva
deitado ao teu lado,
ao sol – uma praia furiosa lá ao longe. 


E ficará dentro de mim a amargura
por não escrever o poema. 


Ele há tantas amargura!
Não escreverei o poema. 


Direi simplesmente
que o colosso de certeza na humanidade do Universo
é inapagável
como o brilho das estrelas
como o amor dos teus olhos
com a força na harmonia dos braços
como a esperança nos corações dos homens. 


Inapagável
como a sensual beleza
da agilidade das feras sobre o campo
e o terror transmitido dos abismos. 


Direi simplesmente sim
sempre sim
à honestidade dos homens
ao viço juvenil da sinfonia das árvores;
ao odor inesquecível da natureza
que apaga todos os possível cheiros amargos. 


Sim!
à interrogação mágica de Talamungongo
do Cunene ou do Maiombe,
ao sonoro cântico de ritmo subterrâneo
e dos chamamentos telúricos;
aos tambores
apelando para o fio da ancestralidade
esbatida aqui e além;
ao ponto interrogativo de Madagáscar. 


Sim!
às solicitações místicas à musculatura dos membros
ao quente das fogueiras endeusadas
na lenha das sanzalas
às expressões magníficas das faces
esculpidas no alegre sofrimento das quitandeiras
e no ritmo febril das sensações tropicais;
à identidade com a filosofia do embondeiro
ou com a condição dos homens,
ali onde o capim os afoga em confusão.
Sim! À África-terra, à África humana.


 Direi sim
em qualquer poema. 


E esperemos que a chuva passe
e deixe de molhar os chilreantes passarinhos
sobre as três árvores da minha única paisagem. 


Isso passa. 


Agostinho Neto 

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